Quando me perguntam qual era minha brincadeira favorita na infância e eu digo que era Barbie as pessoas me olham de um jeito estranho. Como assim? Parece que não bate com o imaginário que fazem do que foi a infância de uma mulher que hoje é escritora, professora e acadêmica. Eu sinto que as pessoas esperam algo incrível e muito sério. Como se aos sete anos eu brincasse de caverna de Platão.
Mas era Barbie, gente. Minha brincadeira favorita da vida era espalhar um monte de tralha no chão com minha irmã, pegar nossas Barbies e brincar O DIA INTEIRO. Era minha maior diversão e o que mais me ajudou a desenvolver minhas habilidades narrativas. Sim, brincar de Barbie era pra mim um exercício narrativo colaborativo extremamente complexo em que eu tinha que negociar para onde ia aquela história, como, onde, por quê, ali, na hora, junto com minha irmã mais nova.
O problema de associar feminilidade com coisa fútil é esse: a gente joga no balaio do “coisa de menina” tudo que é rosa e fofinho e diz que só serve pra ensinar crianças socializadas como meninas a passar maquiagem e se preocupar com a própria aparência (parabéns, patriarcado, você segue sendo esse lixão de ideias). E sim, existe uma dimensão bizarra da divisão de gêneros dos brinquedos, não estou negando isso, mas é importante ressaltar que sendo incentivada a ser criativa, uma criança consegue promover brincadeiras que vão muito além dessas marcas. Mas esse não é o assunto hoje.
O assunto hoje é que eu sempre me senti desconfortável em discussões que colocavam a Barbie como um brinquedo opressor, como se minha vida teria sido melhor se meus pais tivessem me dado brinquedos ditos “de menino” (se bem que eu queria muito ter ganhado o Lava Rápido Hot Wheels, mas beleza). Durante um tempo eu tinha vergonha de dizer que gostava de brincar de Barbie. Como se, ao fazer essa confissão, alguém ia vir gritando tirar minha carteirinha de feminista.
Sim, a Barbie com certeza reforça um estereótipo de beleza inatingível. Sim, a Barbie é eurocêntrica (muito mais no final dos anos 90, quando eu era criança). Sim, a Barbie reforça consumismo. Mas a Barbie era a ferramenta que eu e minha irmã usávamos para criar nossas histórias. Se tem uma coisa que aprendi nos últimos tempos é que duas coisas podem ser verdade ao mesmo tempo e que a gente tem que aprender a viver nesse desconforto.
Foi assistindo um vídeo do Esse Menino no Instagram que eu me lembrei da minha infância. A definição dele do que é brincar de Barbie é cirúrgica:
Barbie é uma brincadeira para crianças profundas e criativas que gostam de desassociar e criar narrativas e enredos em suas próprias cabeças.
Porra. É isso.
Eu e minha irmã seguíamos por horas (horas mesmo, pro horror da minha mãe que queria que a gente almoçasse, tomasse banho, comesse alguma coisa peloamordedeussaidaívocêsduas) criando as histórias mais loucas com as Barbies que a gente tinha. Dentre as mais famosas:
Amigas numa nave espacial explorando o universo criando muita confusão
Amiga cientista inventa máquina do tempo e todo mundo vai parar no passado/futuro e tem que voltar para o presente criando muita confusão
Amigas num orfanato vitoriano com a diretora malvada descobrem o poder da amizade e fogem criando muita confusão
Amigas têm que encontrar um cristal mágico (ou objeto que estivesse disponível na brincadeira como uma panelinha de plástico) para derrotar a vilã opressora criando muita confusão
Amigas tentam parar a amiga que está tentando inventar a máquina do tempo (de novo!) criando muita confusão
Eram histórias cheias de reviravoltas clichés e personagens meio malucas fazendo todas as coisas que a gente via nos filmes de Sessão da Tarde. Era um exercício narrativo. E todas as personagens eram mulheres porque a gente só tinha Barbies (e as Barbies fake, quem lembra delas? Aquelas de plástico duro que faziam espacate toda hora) e um único boneco homem. Esse último era um Ken fake muito mal feito e as pernas dele soltavam toda hora. A gente chamava ele de Jack Burros n’Água porque ele só atrapalhava (narrativamente e literalmente).
Eu experimentei todos os clichés narrativos com a Barbie.
Quando lembro de eu e Jéssica (sim, esse é o nome da minha irmã) brincando, vejo ali minha formação como escritora. Aprendi ali que não basta ter uma ideia legal, que tem que ter um enredo interessante pra sustentar isso. Que as personagens têm que ter motivos para fazer as coisas, que às vezes colocar muitos elementos na história mais atrapalha que ajuda. Aprendi a receber feedback (a dolorosa “ah, melhor não” pra alguma ideia inicial) e também a trabalhar junto porque a gente tinha que se entender, decidir pra onde a história estava indo, quem ia falar o quê, como era a personalidade de cada Barbie, tudo isso sem quebrar a brincadeira.
Brincar de Barbie era poder ser a gente mesma. No nosso próprio mundo, nas nossas próprias regras. A gente se divertia horrores. Às vezes brigava no meio da história Às vezes abandonava outras que ficavam desinteressantes. Muitas vezes repetíamos a mesma trama porque tinha ficado muito boa.
Eu e minha irmã sempre dissemos que a a melhor coisa que aconteceu na nossa infância foi nunca ganhar a casa da Barbie porque isso nos forçou a criar cenários com a nossa imaginação e nos permitiu criar todo tipo de história, inclusive de sobrevivência de desastre natural e coisas em gravidade zero. A gente podia fazer de novo e de novo todo tipo de história. A nossa imaginação era o limite (ou falta dele).
É nessas brincadeiras que eu penso hoje: essas que mereciam ser repetidas. Acho que foram essas que me tornaram escritora. Não é à toa que a dedicatória do meu primeiro livro publicado, Metrópole, foi pra Jéssica. Ela foi cúmplice. Junto com a Barbie.
🌕 Hoje é primeiro dia da Lua Cheia. Quais ideias e histórias vocês estão pensando em mostrar pro mundo, hein?
📚 Eu sou aquela pessoa esquisita que lê vários livros ao mesmo tempo, então é difícil responder “o que estou lendo?”, mas vou tentar focar em alguma coisa. Desde o começo do ano comecei a reler os livros de Earthsea (Terramar), da Ursula K. Le Guin. Decidi ler pela ordem cronológica, não de publicação, mas da lógica do próprio mundo. Começando com o conto “The Word of Unbinding”, de 1975, e seguindo por contos e novelas que foram publicados em Tales of Earthsea, de 2001, até chegar nos romances principais publicados entre a década de 70 e 90, além de noveletas de 2018.
O mais legal dessa releitura é ver como a criação de um mundo não é uma progressão linear e como os primeiros textos de uma autora têm problemas, mas algo de especial também. O que conecta muito com o texto que li recentemente (indicado lá no maravilhoso grupo dos autores da Agência Magh) sobre crescimento artístico na escrita ao longo dos anos. Mas calma, que vou voltar a isso outra vez. Quem ficou interessado na ordem cronológica de Earthsea, está aqui o link.
🎥 Não, eu não vi o filme da Barbie ainda. * choque *
Eu e meu marido entramos em algumas aventuras completistas de vez em quando. Já assistimos toda a saga Star Wars em ordem cronológica da lógica do mundo (gente, isso tá virando um tema aqui? rs), incluindo as séries, alguns anos atrás. Recentemente vimos todos os 007 do Daniel Craig sem nenhum motivo além de uma curiosidade mórbida. E nos últimos dias vimos os quatro primeiros Indiana Jones. E eu só posso dizer que eu não entendo piada dos anos 80. Eu fico o tempo todo: mas era pra rir dele matando friamente um monte de pessoas no Egito/Índia/país colonizado. É isso mesmo?
🎵 Eu vou me proteger das pedras e dizer que não gosto de Speak Now, e que nesse Taylor’s Version, eu gostei mesmo das músicas From the Vault. A colab com Fall Out Boy em “Electric Touch”, a sexy “I Can See You” e a honesta “Foolish One” são as melhores.
"O problema de associar feminilidade com coisa fútil é esse: a gente joga no balaio do “coisa de menina” tudo que é rosa e fofinho e diz que só serve pra ensinar crianças socializadas como meninas a passar maquiagem e se preocupar com a própria aparência".
Esse trecho tocou, viu? Minha cor preferida segue sendo rosa&amarelo e vez ou outra percebo minha tendência a justificar. Como se ao criar consciência das opressões, isso inevitavelmente tivesse que se colocar do lado oposto.
E nunca tinha pensado nessa perspectiva de "criar narrativas e se tornar escritora" a partir do brincar de Barbie. Achei fantástico! 💖