❄️Dezembro: uma família se espreme em um apartamento pequeno enquanto um peru está assando no forno. Tá tão quente que as pessoas se revezam para ficar perto da janela da sala e pegar um ar enquanto colocam a cerveja trincando no parapeito. Um tio aleatório tenta se livrar de uma guirlanda que estava batendo na testa de todo mundo. Uma tia ansiosa arreda a árvore de Natal para um cantinho, para dar mais espaço, enquanto uma avó grita pra ter cuidado com o presépio e com as velas acesas. Do nada, uma prima liga uma música “pra animar esse velório”. Em pouco tempo tá todo mundo dançando. Rindo. Contando piada. Calor dos infernos, olha só. É quase como se a gente tivesse que estar comemorando um festival de verão, né?
Né?
É quase como se a noite feliz, com aquele aconchego gostoso de comer comidas e bebidas quentes, de colocar fruta cristalizada em tudo, de jantar tranquilo com a família dentro de casa tivesse que acontecer em uma outra época do ano. Em junho. Tem que acontecer em junho, gente. No inverno. Estamos no hemisfério sul. Mas ao invés disso em junho a gente tá fazendo festa junina, que é basicamente dançar loucamente em volta de um poste colorido ao ar livre. Quem já colocou duas meias calças para aguentar uma noite de São João e ter que ficar colocando e tirando o gorro de Papai Noel no Natal sabe o sofrimento que é. Ficar dentro de casa no calor e dançar ao ar livre no inverno? É quase como se estivesse trocado. E está.
O Natal, como muitas celebrações cristãs, apropriou muita coisa das antigas tradições pagãs que celebravam os grandes marcos da relação do Sol com a Terra: o solstício de inverno (a noite mais longa), o solstício de verão (o dia mais longo) e os equinócios de primavera e outono (quando a duração do dia e da noite são iguais). Na verdade, essa marcação do ano aparece em muitas culturas no mundo porque são observáveis. Essa conexão com a natureza permite uma organização da vida comunitária: o tempo de plantar e de colher, de se recolher e de expandir, de refletir e de compartilhar.
O cristianismo se apropriou dessas tradições para se consolidar. Assim, o solstício de inverno, a noite mais longa, que traz a esperança da luz futura, é o Natal. O equinócio de primavera, que traz a renovação da terra com renascimento e fertilidade, é a Páscoa. A comemoração do auge do verão com toda sua alegria e expressão comunitária é a festa de São João. E por aí vai. Tem várias outras datas pagãs que foram incorporadas e as correlações não são tão simples assim, tenho ciência disso, tem gente que passa a vida estudando essas festas, mas o processo é mais ou menos esse: manter tradições populares conhecidas e dar um novo significado a elas para que a crença nova prospere.
O problema foi a colonização.
É, o problema é sempre a colonização. Os europeus cristãos que vieram para América do Sul, por exemplo, queriam continuar sua prática religiosa (e impô-la guela abaixo pra todo mundo). Mas ela era atrelada a uma data fixa e não mais a um evento da relação Sol-Terra. O Natal é 25 de dezembro sempre, não importa se ele está acontecendo em pleno Solstício de Verão em uma das metades do planeta. Então a tradição popular de acender lareira, velas, decorar tudo com plantas de inverno (como visgo e azevinho), comer frutas cristalizadas (já que no inverno não tem fruta fresca de onde eles vieram), colher castanhas e fazer uma ceia com comidas quentes tinha que acontecer. Mesmo no calor dos infernos. E aí deu no que deu e temos essa peculiaridade que é o Natal brasileiro onde um tio mais velho tem que se enfiar numa roupa vermelha quente, mas pelo menos ele tem uma cerveja gelada no cantinho para aliviar.
Nosso planeta tem uma inclinação no eixo de 23°26' (e isso não é fixo. Essa informação me assusta um pouco), o que causa diferença de incidência de luz nos hemisférios, um fenômeno que ao longo dessa vida aí chamamos de estações. Então hoje, 21 de junho, nesse nosso cantinho no Sul, é Solstício de Inverno, o que basicamente quer dizer que é Natal. Bem, se a gente eliminar a parte cristã da coisa.
Hoje é dia de reunir a família dentro de casa pra escapar do friozinho noturno. Fazer um jantar gostoso com comidas quentes, tomar um vinho, comer frutas da estação, acender umas velas. É tempo de recolher e meditar. Ficar quietinha na sua. Refletir sobre o que você quer da vida. Sonhar com a luz que virá.
Porque o legal da noite mais longa do ano é que ela é a última. Daqui para frente, os dias vão ganhando espaço pouco a pouco. Nada é tão escuro quanto a noite de Solstício de Inverno, mas é nela que nasce a Luz. Por isso ela é uma data de esperança, de promessa por aquilo que virá
Para mim, existe uma paz muito profunda em se conectar com os ciclos naturais. E por mais que não seja possível fazer isso com capitalismo e calendário gregoriano, é muito bom colocar uma blusinha de frio (mesmo que seja mais fininha), tomar um chá e olhar a natureza se recolher um pouco. Me lembra que eu também sou desse mundo e que preciso me contrair também.
Outras coisas sobre o Solstício:
📕 Para quem se interessa sobre esses marcos pagãos do ano — a chamada Roda do Ano — a partir de uma referência do hemisfério Sul, eu recomendo o trabalho da Glenys Livingstone. Ela é uma australiana estudiosa dessas celebrações da relação Sol-Terra e da conexão que elas têm com as antigas religiões da deusa.
O site dela, PaGaian Cosmology, tem uma estética wordpress dos 2000 bem latente, mas depois que isso é superado, dá para aproveitar muito o conteúdo disponível ali. Inclusive o primeiro livro dela, que tem o mesmo título do site e é baseado em sua pesquisa de doutorado, está lá gratuito para leitura. Infelizmente, o conteúdo está disponível apenas em inglês.
📜 Deixo aqui para vocês a tradução de um poema-convite da Glenys Livingstone sobre o Solstício de Inverno. A tradução é minha mesmo, meio torta, mas na melhor das intenções, bem consonante com o dia de hoje.
A escuridão atinge Sua plenitude, no entanto…
Ela gira, e a semente da Luz nasce.
Essa é a estação de acender velas,
e receber a Graça do Nascimento.
A história Antiga nos conta que nessa noite,
a Grande Mãe vai parir
a Criança Divina
— Aquela Nova Juventude dentro de tudo.
Nós celebramos Sua eterna Cosmogenesis,
e o Milagre do Ser.
Ó Noite Feliz.
🌕 Lua Cheia maravilhosa no céu porque hoje é dia da grande paralisação lunar (o lunistício). Um fenômeno super raro que acontece a cada 18 anos e meio. Hoje a lua, aqui no hemisfério sul, vai ficar tão alta no céu que vai parecer que ela está parada. Já deu uma olhadinha nela hoje? Aproveita e me conta como você vai celebrar esse Solstício de Inverno.
Aproveite também para ler essa antologia lunar deliciosa que tem conto meu!