✍🏽 Escrever não é seguir uma linha reta. Talvez a parte mais difícil de ser escritora seja entender que vamos escrever coisas das quais não vamos gostar no futuro. Coisas que depois vamos mudar de ideia. Talvez até coisas que a gente se arrependa. Uma trajetória de escrita é isso: erros e acertos.
Eita.
É preciso fazer as pazes com a noção de que a vergonha, o arrependimento ou mesmo o bom e velho “eita” são parte da realidade de quem escreve.
Gostamos de focar na permanência da palavra escrita. É Shakespeare, ué: “Enquanto os homens puderem respirar e ver, / Viverá meu canto, e ele te fará viver” (Soneto 18). Tudo passa nessa vida, mas a literatura permanece. A literatura é capaz de tornar sujeito e objeto imortais. O que está escrito e publicado é pedra de lei, é imutável. Mas ninguém comenta que talvez Shakespeare não gostasse de todos os seus sonetos. Que talvez ele tivesse vergonha de algumas rimas e metáforas.
É comum ouvirmos que escritores não gostam de reler suas próprias obras. O motivo normalmente é a ideia de que uma releitura nos faria reescrever e reescrever o texto até que ficasse perfeito. Acho que há um tanto de verdade nisso, apesar de eu não gostar muito dessa exaltação do perfeccionismo. No entanto, existe um motivo mais pessoal de não revisitar com frequência os próprios escritos: às vezes aquele texto não é mais condizente com quem somos hoje.
Acontece. A questão é que eu não sabia muito bem como lidar com isso. Já contei pra vocês que a minha escrita mudou, então revisitar os textos dessa minha primeira fase é sempre uma experiência estranha. É um misto de querer ter feito diferente com me lembrar de quem eu era quando escrevi. Às vezes encontro essas páginas com olhos bondosos, outras com uma ferocidade crítica que me assusta. Nos últimos tempos, revisitando Ursula K. Le Guin, consegui entender um pouco mais dessa sensação e entender que só há uma única saída: continuar escrevendo.
Os três primeiros livros da Ursula (vou chamar de Ursula, porque tenho passado bastante tempo com ela e me sinto íntima) – Raconnon’s World [O Mundo de Raconnon], Planet of Exile [Planeta do Exílio] e City of Illusions [Cidade das Ilusões], publicados entre 1966 e 1967 – são histórias legais, mas não há nada de especial nelas. Na verdade, são de uma ficção científica bem genérica, com alguns temas legais, é verdade, mas é isso. Ninguém ficou impressionado, nem ela mesma. Mas Ursula continuou escrevendo e nos dois anos seguintes, ela publicou duas obras fundamentais da fantasia e da ficção científica, respectivamente: O feiticeiro de Terramar e A mão esquerda da escuridão.
Esses livros são monumentos literários. Pra mim é meio louco que tenham sido escritos em tão pouco tempo e após livros que eram no máximo ok. Mas a verdade é que Ursula sabia que a escrita é feita de prática. Não é possível escrever um grande livro sem escrever livros medianos antes, sejam eles publicados ou não. O ofício da escritora é lento e erros vão acontecer. O jeito é abraçá-los.
Mesmo O feiticeiro de Terramar e A mão esquerda da escuridão têm problemas que a própria Ursula reconheceu ao longo do tempo. Ambos colocam o gênero masculino como padrão. Os bruxos são homens em Terramar; as mulheres praticam uma magia fraca e condenada, não podendo se formar na escola de magia de Roke. Com toda a exploração de gênero em A mão esquerda da escuridão, o pronome masculino é tido como neutro e é aplicado a todos. Ao invés de ser defensiva, Ursula reconheceu essa limitação: “a partir da minha própria educação, eu não consegui ir a fundo e vir com a ideia de uma mulher feiticeira”1. Ao invés de se sentir paralisada por um aparente defeito em seus livros, Ursula continuou escrevendo.
Ela demorou dezessete anos para escrever e publicar Tehanu, o quarto livro da série Terramar, que tem como foco a experiência de mulheres. De repente aquele mundo não aparecia da mesma forma. A experiência fez com que sua escrita mudasse profundamente. Mas ler a série Terramar em ordem é de uma beleza singular: ver Ursula escavando aquele mundo antes dado como conhecido, se enfiando nas rachaduras, revendo o que ela mesma tinha dado como certeza décadas atrás. As palavras têm um gosto diferente, o ritmo do texto é outro, mas isso pouco importa. Terramar se torna viva justamente porque permite variadas excursões.
Ursula mudou de ideia. A partir do movimento feminista, a partir da leitura, a partir do diálogo com outros escritores. Mas ela nunca parou de escrever e, principalmente, de escrever sem medo de errar. Entrar no texto com tudo o que somos, com nossas limitações e medos, e explorar a partir da escrita. Ir com tudo, acampamento completo, naquele mundo e, depois, se sentirmos aquela vergonha de umas frases mal-acabadas ou de algumas ideias que não condizem mais, tudo bem. Valeu a viagem. Às vezes, dependendo do caso, vale até a pena voltar.
“Escrever do nosso próprio ser é um processo que precisa ser revisto o tempo todo.” Sempre que leio essa frase da Ursula me encho de espanto. Me faz rever as ideias rígidas sobre estilo característico e reconhecível que muitas vezes buscamos como escritoras. Glamourizamos o escritor que fica lá no seu jeito, consistente, mas existe uma outra forma. Ursula sempre foi boa em descobrir a outra forma
Eu tive uma carreira longa e boa. Em boa companhia.
Aprender a fazer algo bem pode levar uma vida inteira. E vale a pena.
- Ursula K. Le Guin
Existem escritores que buscam a obra perfeita. Escritores de publicações esparsas. Aqueles que vêm com um grande romance, uma grande coleção de contos e poemas e, pronto, saem de cena. Existem os Raduan Nassar da vida. Tenho respeito por essa escolha, mas entendo que jamais conseguiria. Eu preciso escrever. E para quem faz essa escolha da escrita longeva, é necessário fazer as pazes com as várias versões de nós que estão presentes no que escrevemos. Entender que a escrita não é pedra, é água. São vários caminhos e nem sempre permanecemos neles. E tudo bem.
outras coisas para aprender com Ursula K. Le Guin:
🌎 Não faz sentido se refrear quando o assunto é criar mundos nos quais gostaríamos de viver. Explorar cada canto dessas possibilidades foi uma tarefa levada muito a sério por Ursula, que criou mundos possíveis que iam desde mundos pós-apocalípticos inspirados por sua terra natal (Always Coming Home) até cidades que contém dilemas morais complexos (Aqueles que abandonam Omelas). Em sua obra, imaginar alternativas de se viver nem sempre resultam em mundos sem problemas, mas sempre em uma exploração que nos coloca frente a frente com a ideia de que é possível sim viver fora do capitalismo. Para o bem ou para o mal, humanos se organizam de diversas formas e vale a pena colocar essas formas no papel. Essa ideia, inclusive, pode ir além da ficção, como o famoso discurso de aceitação da medalha da National Book Foundation mostra: Full Speech: Ursula K. Le Guin’s Passionate Defense of Art over Profits (youtube.com). Esse posicionamento é tudo. E saber que ela estava morrendo de medo só torna tudo mais incrível ainda.
🏃🏽♀️ Como qualquer profissão, a de escritora exige estudo, preparação e conhecimento das ferramentas. Não existe nenhum segredo: a gente escreve melhor quanto mais escreve. O Luri fez um texto muito bom sobre isso – O engano da teoria musical que existe na escrita (substack.com), então não vou me repetir. A Ursula era uma grande defensora da escrita como prática. Inclusive, o pessoal da Seiva colocou em pré-venda uma edição do maravilhoso Como criar histórias: um guia prático para escritores. É a Ursula falando da escrita como ofício. Vale a pena dar uma olhada!
🌕 Hoje não apenas é lua cheia, mas também é uma superlua! Isso quer dizer que a lua cheia coincidiu com o momento em que a lua está mais próxima da Terra. Ela vai parecer mais brilhante e imponente, então abra a janela mais próxima e dê uma olhada! No mais, quem quiser, não deixe de contar os processos de escrita passados e presentes.
Aproveite também para ler essa antologia lunar deliciosa que tem conto meu!
Todas as citações desse texto foram retiradas do documentário Worlds of Ursula K. Le Guin.