Dezembro nem chega direito e já somos atormentadas pelas listas: os melhores do ano, as metas cumpridas, as metas não cumpridas, as trends de quem foi e não foi triste, o Spotify nos lembrando que nosso gosto musical pode sim ser questionado, as melhores fotos, as memórias queridas (não, essas duas coisas não são equivalentes) e tudo mais que pode ser metrificado nessa vida. Se tiver um app pra isso, melhor ainda. Normalmente, eu gosto dessas coisas, mas 2024 foi bem diferente e não consegui rankear nada. Foi meu ano da experimentação.
Não, não vou vender um curso no final desse post te ensinando a viver melhor nem fazer qualquer referência ao filme Sociedade dos Poetas Mortos, carpe diem, etc (essa não conta). Até porque minha vida não mudou radicalmente. Continuo trabalhando longas horas no mesmo emprego que tinha antes e sendo assolada pelas mesmas questões existenciais por viver no capitalismo tardio. Mas esse ano teve a energia da Maga. Ou do Mago, como é mais tradicionalmente conhecida no tarot. Era a hora do “melhor feito que perfeito”, do “vamo fazer e depois a gente vê”, do “fazer com o que tem”.
E meio que funcionou.
O que é experimentar quando se é uma adulta millennial de 35 anos? Definitivamente não é o que a nossa cultura prega sobre experimentação. Sabe aquele papo de faça uma coisa diferente todo dia, vá a novos lugares, conheça novas pessoas? Eu sempre odiei isso. É como se mundo fosse feito só para pessoas extrovertidas. Eu não tenho reserva energética pra uma coisa dessas. O que eu preciso é de tempo pra apreciar as coisas, sentir o que preciso sentir, refletir. Foi quando saquei que experimentar era dilatar o tempo pra fazer o que já gosto, o que sei que faz sentido pra mim nessa fase da vida.
Experimentar foi: lanchar no deck da cantina respirando devagar e olhando as árvores do campus; tomar banho com pingos de óleo essencial cheiroso no chão; ouvir música indo pro trabalho e cantar sem pensar em mais nada; assistir um episódio de Steven Universe com meu esposo quando chegamos em casa quase meia noite do trabalho. Foi sentir os momentos de pausa que pareciam tão distantes em 2023.
Também parei de colocar prazos pesados em cima da minha escrita criativa. Uma frase da minha agente, a querida
, quando eu disse que estava atrasada com meu livro, me marcou muito: “Melissa, você não tá atrasada. Faz no seu tempo”. Então ao invés de escrever/reescrever meu romance num sofrimento e ansiedade de um prazo criado por mim mesma que me deixava desesperada, eu tentei uma nova abordagem: escrevi nos feriados longos, nas férias, até durante a greve de professores que rolou esse ano. Escrever um romance, como diz Murakami, exige esforço físico. E eu percebi que pra mim isso é muito verdade. Na minha rotina pesada de trabalho, não tenho mesmo condições de me dedicar escrever algo dessa grandeza e não ser arrastada pela exaustão. Então fui fazer outra coisa.Escrevi contos, pequenos vislumbres de universo. Isso meu corpo aguenta. Escrevi à mão no meu caderninho de escrita, sempre com caneta colorida porque quero me animar, cenas aleatórias de histórias que vivem na minha cabeça. Conversas de personagens que me acompanham mesmo em reuniões online. Se me estresso, paro um pouquinho e escrevo no caderninho. Uma magia de alguns minutos. Com esse ritmo escrevi e publiquei um conto esse ano e tem mais um vindo aí. Aguardem.
Um ponto importante foi pintar com aquarela. Ter um hobby sem a menor pressão de ser boa nele me libertou da noção de que tudo que eu faço tem que ser produtivo. Não existe satisfação maior do que fazer nada por nada. Existe um certo ar de rebeldia em usar minha criatividade tão sem propósito. Me lembrei que gosto de aprender, que gosto de me dedicar ao novo, mesmo que seja pra me frustrar. É bom ser aprendiz do zero. Pra se encontrar a gente precisa se perder um pouquinho.
É importante dizer que isso tudo foram experimentações. Em vários dias não teve música nem cheirinho bom. Em muitos outros não teve escrita no caderninho. Pintei muito menos do que gostaria. Fiquei frustrada com a minha escrita e culpada por não ter um ritmo constante. Chorei muito. Senti muita saudade. 2024 foi um ano esquisito. Não é que até comecei a aprender a ser tia? (Essa experimentação ainda está em andamento).
Enquanto escrevo agora esse post, dessa news que também foi um grande experimento, percebo o quanto todas essas experimentações são retornos ao que eu sempre gostei: música, literatura, arte de forma geral, blog, tempo para mim. Aos 35, eu me vejo relembrando quem fui aos 15: o tempo nos atravessou, eu e essa adolescente, mas ainda desejamos, ainda buscamos a intensidade da vida nas coisas que amamos fazer. Nos nutrimos pelas experiências das vidas que vivemos e criamos no papel, nas melodias um tanto quanto emo, na necessidade de silêncio.
Não seria experimentar também uma espécie de volta pra casa?
E outros imperativos do tempo:
🖤 Na última lua crescente, um dos meus mentores, o professor Julio Jeha, que foi meu orientador de doutorado e meu professor desde o curso de graduação em Letras na UFMG, nos deixou. O Julio talvez tenha sido uma das pessoas na minha trajetória acadêmica que mais tenha falado sobre o quão importante é a experimentação para uma pesquisadora, mesmo na área dos estudos literários: uma ideia pode estar errada, uma justificativa não tão boa, um argumento pode não ser válido. É preciso testar e colocar à prova. E nada de sofrimento: se as conclusões estiverem em cima de pressupostos errados, é só tentar de novo e manter a mente aberta.
Nas correções de trabalhos, ele costumava escrever “So what?” (“E daí?, em português) no canto, nos lembrando que as conclusões deveriam nos levar a algum lugar. Nunca encarei isso como uma crítica cruel, até porque o Julio era um homem educadíssimo, embora bastante irônico. Ele valorizava o rigor acadêmico e dava suporte para quem quisesse construir um pensamento crítico embasado.
Foi o primeiro professor com quem tirei um C na graduação (na matéria “Poe e o romantismo americano”, me lembro bem) e também o primeiro que, após um seminário apresentado em uma disciplina do mestrado, me disse: “Não está bom. Você consegue fazer uma análise melhor que essa”. E eu fiz! Ele orientou uma tese (a minha!) da qual bem possivelmente discordava de várias ideias a um nível pessoal, mas via que os argumentos eram sólidos e o texto estava bem feito. Respeitava meu trabalho. Uma vez, quando perguntei sobre minha escrita acadêmica, ele disse que eu era muito direta e clara, e que essa transparência deixava evidente qualquer problema argumentativo, mas que isso não era um defeito. Sem nenhum floreio, minha tese tem 200 páginas, o que na área de literatura é considerado algo breve quando se fala de teses.
Jul:1io era professor e pesquisador na área de literatura de língua inglesa, especialista em literatura de horror. Também amava um bom café e orquídeas. A UFMG fez uma homenagem bem bonita em que vocês podem conhecer um pouco mais do trabalho dele aqui.
Fica a saudade e minha gratidão.
☀️ A vida é cíclica. Dia 21 de dezembro, exatamente às 06:19, é Solstício de Verão. Nosso hemisfério sul está mais inclinado em direção ao Sol e esse será o dia mais longo do ano. Nessa data, que exala luz, é tempo de celebrar a vida e as nossas experimentações, mas é também quando a escuridão é gerada: a partir daqui, os dias só podem ficar mais curtos e as noites progressivamente mais longas. A vida é cíclica.
Esse é o Tempo da rosa, do desabrochar e do espinho,
fragrância e sangue
que derrama a Dádiva do Ser.
Glennys Livingstone
🌕 Hoje é Lua Cheia! Estamos na décima primeira lunação do ano! Como foram as experimentações que vocês fizeram por aí?
O conto “Departamento de burocracia e licantropia”, publicado na antologia A lua é sempre a mesma, foi resultado das experimentações desse ano. Escrevi uma comédia sobre lobisomens que trabalham numa repartição pública no experimento que foi meu caderninho de escrita criativa. Contei um pouquinho desse processo aqui.