⛱️ O tempo da pausa é frequentemente associado à lua nova. É a hora da introspecção, do planejamento, do descanso. Porque, afinal, antes de começar qualquer coisa, é preciso aprender a arte da espera. Para a lua finalmente aparecer no céu, não nos resta nada a não ser esperar.
Só que a gente esqueceu completamente isso aí nos últimos mil anos.
Ano passado, como a maioria dos millennials trabalhadores, eu estava à beira de um ataque de nervos. Talvez não na beira. Mais já com um pé dentro do ataque mesmo. A exaustão tomou conta de mim a um nível que eu estava doente demais para discutir isso com um médico. A preocupação imediata era fazer meu corpo voltar a funcionar como deveria.
“É estresse,” me disseram os médicos. “Você já tentou não se estressar?” Eu lembro de ficar parada com um olhar vazio no consultório toda vez que vinham com essa pergunta. Como mulher, isso sempre me irrita porque, como sociedade, a gente nunca estudou pra valer o corpo feminino e dizer que é estresse é um ótimo jeito de deixar pra lá diagnósticos sérios. Mas dessa vez eu vou dar o braço a torcer porque era estresse mesmo.
Minha imunidade ficou um lixo em 2023 e quando a febre da Covid baixou o suficiente para que eu conseguisse pensar, fiz o que qualquer pessoa estressada e com uma relação disfuncional com o trabalho faria: ler um livro sobre meu estresse e relação disfuncional com o trabalho para resolver o meu problema! É, eu sei.
Eu sou o tipo de pessoa que lê muito e com pouco critério, então acabei parando em livros interessantes e bem pesquisados como Burnout, das irmãs Nagoski, mas também numa galera new age estranha falando sobre yoga nidra e uma autobiografia de uma peregrinação em busca de Madonnas negras (no caso a Virgem Maria mesmo, não a cantora). O que esses livros tinham em comum? O que o meu corpo estava tentando me dizer há meses: não dá pra manter esse ritmo. Você tem que parar. Tem que descansar.
Eu tentei contornar. Fui para os caminhos conhecidos, dentre eles:
“Se eu tiver um planner melhor, eu resolvo minha vida”
“O pulo do gato é organizar uma lista com tudo que preciso fazer no dia e seguir não importa o que aconteça”
“Vou meditar todo dia de manhã”
“Vou fazer um curso sobre como organizar minha vida e não ter burnout”
“Vou fazer um curso sobre ter um planner pra organizar minha vida a partir de uma lista e não ter burnout”
“Vou praticar gratidão escrevendo frases e colocando numa jarra”
“Vou correr 5km!”
“Vou correr 5km com meus cachorros todo dia às 7 da manhã!”
Todo mundo passa pelos cinco estágios da negação do ataque de nervos, vulgo burnout: planner, curso online, oração gratiluz, crossfit e aceitação. Comigo não foi diferente.
Só que o que eu precisava era descansar. Simples assim. No entanto, quando aceitei isso, caí numa realidade terrível que é: eu não sei descansar.
Aparentemente, descansar não é ler livro. Não é assistir série na Netflix nem dançar ou fazer yoga. Também não é dormir. Eu já suspeitava que não era fazer curso online, mas tudo bem. Aparentemente a maioria dessas coisas é lazer e dormir é uma necessidade fisiológica (coff coff). Lazer é importante para termos bem estar, mas não é descanso. Então o que é? Vamos lá:
des.can.so: substantivo masculino Período de folga; tempo em que não se trabalha; repouso. Falta de ocupação; tempo dedicado ao ócio; vagar.
Foi difícil entrar na minha cabeça que descanso é não fazer nada. Absolutamente nada.
E enquanto eu ficava sentada no sofá do meu escritório olhando pro teto perguntando pra mim mesma se eu já estava descansando ou não, eu entendi algo que me deixou profundamente aterrorizada: descansar é contemplar o vazio.
*inserir imagem de pânico pessoal aqui*
Não sabemos lidar com o vazio. Somos viciadas em buscar soluções. Um vídeo no Youtube vai me dizer o que preciso. Vou rolar rolar e rolar a tela só mais um pouquinho. Preciso de alguma coisa que não me faça pensar no que estou pensando. Quero tudo que não me faça encarar o nada, o não saber, a página em branco. Não quero mistério, quero a certeza. Alguém me encha, me preencha, de alguma coisa que não sei o que é, mas que eu quero. Tudo. Tudo mesmo para não ter o vazio.
O vazio sendo o vazio.
Mas não é dali que as coisas nascem? Tomando banho à toa, de repente a mente vai embora e brota uma ideia para uma história nova. Olhando a paisagem numa janela de ônibus e, PUM!, vem aquele insight. O vazio. É o escuro. Dali nascem coisas. Até o Deus judaico-cristao pairava sob as águas no escuro antes de criar o universo.
Viemos do vazio escuro de um útero. A vida se forma na escuridão. A luz mostra o que já existe, mas para existir, tem que ter a passagem pelo escuro. O lugar do mistério da vida. A gente busca o preenchimento, mas a verdade é que só o vazio consegue fazer isso. O pulso só existe pela pausa. Sístole e diástole. Inspira e expira.
A minha vida toda eu corri do vazio. Leituras. Atividade física. Trabalho. Projetos. Uma corrida insana para preencher todo meu tempo fazendo o máximo de coisas que eu pudesse por diversos motivos. Algumas vezes era trabalho mesmo, precisava me sustentar, outras era uma obsessão nova por algum assunto, a vontade de me provar para alguém, de me distrair com alguma coisa porque a vida estava difícil. Mas criar nessa lógica é muito sofrido. Toda ação se torna pesada, como um sacrifício aos deuses da luz. Quando a gente vê tudo, é difícil abrir mão, é difícil não sentir a responsabilidade. Na luz queremos tudo que os olhos veem, mas é difícil imaginar o que não está ali. É difícil encontrar o verdadeiro desejo.
Então eu descansei no sofá do meu escritório, deixando as ideias irem e virem. Eu me senti feliz. Plena. Por trinta segundos porque logo depois eu comecei a pensar na minha lista de tarefas e se eu estava descansando de forma correta, mas tudo bem.
Não existe um app pro descanso. Descansar não gera lucro. Descansar gera coisas que são imensuráveis na lógica do mercado: felicidade, insights sobre a vida, criatividade. O vazio, a pausa, o silêncio abrem espaço. E é sempre perigoso abrir espaço em um sistema que nos coloca apertados, confinados, em um único lugar. Até que a gente esgota, dá pane. Se torna doente, improdutivo, e um médico te diz que talvez seja melhor não se estressar.
O descanso se tornou mais um item na lista de coisas básicas da humanidade que se tornaram um privilégio. Não paramos mais quando a noite cai ou quando a lua nova chega. O dia se estende cada vez mais, com tarefas intermináveis, dificuldades de transporte, trabalho de cuidado, preocupação se a conta vai fechar. A solução que nos apresentam é comprar alguma coisa que vai nos trazer alívio ou fazer algum curso para melhorar nossa habilidade de tolerar e normalizar uma rotina incompatível com o ser humano.
Mas só o vazio preenche.
É da escuridão que as coisas nascem.
Outras coisas que não sabemos:
✏️ Eu sou muito ruim com desenho, pintura, artes visuais no geral. Por isso mesmo estou fazendo mais disso esse ano, num caso milagroso de cumprir minha promessa de ano novo (lunar). Eu comprei um kit básico de aquarela, um curso da Domestika, e comecei a pintar.
Quando eu falo que sou ruim é porque sou ruim mesmo. Real oficial. Eu não levo jeito, minhas aquarelas são sofríveis. A gente sempre tem aquela esperança de que no fundo vai ser bom. Olha, tenho um talento escondido! Posso dizer com segurança que não tenho. No entanto, sinto falta quando fico muito tempo sem pintar e essa atividade se tornou um rolê casal com meu esposo (esse sim com talento) muito divertido.
Comecei a desenhar também no meu caderno de escrita (onde coloco frases soltas, trechos e ideias sobre o que estou escrevendo no momento). São desenhos péssimos feitos a caneta mesmo que faço quando começo a ficar irritada com as palavras e perco a paciência com a escrita. Começo a desenhar a vibe que a escrita está me passando. Para o conto novo que estou trabalhando (hehe novidades vindo aí), desenhei dois pássaros e um casarão colonial. Tudo muito péssimo, mas me deixou bem feliz. É estranhamente libertador poder ser ruim em alguma coisa e só curtir.
👩🏽 A gente realmente não estudou muito o corpo feminino. Esse viral do Tik Tok é a pura verdade. O clitóris, por exemplo, só foi totalmente mapeado do ponto de vista anatômico em 2005 pela urologista australiana Helen O’Connell. Doenças como a endometriose, por exemplo, podem ter um tempo de diagnóstico de até 10 anos, enquanto a Síndrome do Ovário Policístico tem poucas opções de tratamento além do “toma essa pílula hormonal aqui e vamos ver no que dá.” Testes de remédios são feitos com homens cis por padrão. É assustador que, em 2024, metade da população do mundo ainda esteja sujeita a especulações a respeito de sua saúde e bem estar por falta de informação e pesquisa médica sérias. Assim é realmente fácil falar que tudo é estresse, mesmo quando não é.
Sobre esse assunto, recomendo o excelente podcast Corpo especulado, produzido pela equipe do Azmina.
🌑 É Lua Nova da nona lunação do ano. Ainda é escuro. Ainda é o tempo do silêncio. De olhar o céu à noite e ver escuridão. Ver o nada. É muito, muito estranho contemplar o vazio. Já tentou?
Não saber descansar é um tema constante de terapia aqui. Em 11 de 10 sessões ela me pede descanso e eu: é de comer? 😅
Mas é sempre um espanto o tanto que não sabemos do descanso.
Gostei do "poder não ser boa em alguma coisa". É libertador!