🩸 Quando olhamos para a história da humanidade, os resquícios arqueológicos de quem nós, humanos, já fomos, não tem muito espaço para falar de menstruação. Mesmo que esse seja um traço marcante da nossa espécie. Porque, vejam só, menstruação não é algo comum. Menstruam nesse mundo dez espécies de primatas, quatro de morcegos, o musaranho-elefante (gente, juro que é o nome do bicho no mundo real) e um tipo rato. Menstruação é uma das categorias que nos faz humanos. E por que não ouvimos falar sobre isso?
Bem, alguém grita patriarcado aí do fundo. A grande maioria das pessoas que menstruam são mulheres cis e a gente sabe como a história nos tratou e ainda nos trata. Vistas como um corpo deformado, doente ou endemoniado dependendo do período histórico, é de se esperar que menstruação nem seja uma palavra dita em voz alta, que dirá ser considerada um dos pilares da nossa humanidade. Só que metade da população menstrua por volta de uma semana todo mês. Existe toda uma experiência e uma vida em torno disso que são simplesmente ignoradas.
Ao longo da história da arqueologia, vários achados foram feitos sobre como nossos antepassados lidavam com os ciclos da vida. Existem marcações de 28 ou 29 tracinhos em pedaços de osso que hoje interpretamos como calendários. O que é que o ser humano poderia querer medir que tem duração de mais ou menos 29 dias? Aí vai o arqueólogo imperialista do século XIX dizer que é um calendário de caça. No máximo vai dizer que é um ciclo lunar e ignorar o fato de que a reprodução da espécie depende do entendimento dessa marcação. Típico. Hoje tem todo um um movimento na arqueologia para rever esses artefatos e entendê-los a partir de uma outra perspectiva, principalmente o que veio antes do patriarcado. Sim, o mundo existia antes do patriarcado, gente. Nem sempre foi assim. Inclusive a relação com a menstruação.
Menstruação é o processo da descamação do útero quando não há fecundação e é só o primeiro passo do que chamamos de ciclo menstrual, que possui, de modo geral quatro partes:
a menstruação propriamente dita, que pode durar de três a sete dias.
a fase folicular, em que as quantidades do hormônio estrogênio começam a subir. Isso faz com que o endométrio, uma camada no útero, cresça e engrosse, o que é necessário caso um bebê resolva aparecer. O hormônio folículo-estimulante (FSH) faz o que o seu nome diz e estimula os folículos dos ovários para que um deles forme um óvulo maduro. É uma fase de bastante energia e disposição.
a fase ovulatória, a única fase em que é possível engravidar. Aqui um dos ovários vai liberar o óvulo da vez, o mais maduro de todos, prontinho para ser fecundado. Ao invés de dizer que você é o espermatozoide mais rápido, pode dizer que é o óvulo mais maduro rs. Um outro hormônio, o luteinizante (LH) aumenta também. Cabelo, pele, tudo fica mais viçoso e brilhante nessa fase, assim como o humor e a sociabilidade.
a fase lútea, em que o óvulo começa sua viagem pelas trompas de falópio até o útero. O nível de progesterona começa a subir e aquela camada do endométrio só aumenta. Aqui dois caminhos são possíveis: se esse óvulo encontra um espermatozoide, bingo, implantação e gravidez! Por isso a camada do endométrio precisava ficar prontinha. Caso esse encontro não aconteça, os níveis de progesterona e estrogênio começam a baixar (a famosa TPM) até que estejam mínimos.
E quando eles estão mínimos, aquela camada construída não se sustenta mais e… menstruação! O ciclo recomeça.
Tudo isso acontece nessa grande dança hormonal, uma coreografia muito bem ensaiada entre ovários e cérebro. O padrão é que dure por volta de 28-29 dias, mas é normal um ciclo durar entre 21 e 35 dias. Alguns medicamentos, como antibióticos, má nutrição e estresse crônico podem interromper esse ciclo. Vale lembrar que o uso de hormônios sintéticos, como a pílula anticoncepcional, alteram justamente esse esquema todo para interromper a ovulação.
Ok, momento altamente aula de biologia, mas eu nunca aprendi isso na escola. Na verdade, eu não sabia de nada disso até os meus 26 anos, quando decidi ativamente estudar. E sabe o que é mais assustador? Não é só meu entendimento desse processo que é muito recente, mas o da medicina em geral, que não está muito interessada em menstruação, como o restante do mundo. Patologias relacionadas são pouco estudadas e um diagnóstico de endometriose, por exemplo, pode levar até dez anos.
E existe ainda uma falta de conhecimento que não é do nível biológico. Esse, muita gente que menstrua a vida inteira não faz a mínima ideia, mas assusta como as pessoas que não menstruam não fazem ideia do que é menstruação, da cor, da sensação, do volume, etc. e assusta mais ainda como isso é considerado totalmente normal na nossa cultura. Vide comentários bizarros internet afora de homens cis desinformados falando sobre segurar o fluxo menstrual igual se prende cocô, sobre cura da menstruação e outras loucuras. A falta de visibilidade da menstruação gera um desconhecimento do processo para todo mundo. Não dá pra saber de algo do qual não se fala. Que não é representado.
A primeira vez que li um livro de ficção que abordava menstruação foi Carrie, do Stephen King. Aqui a menstruação funciona como um rito de passagem abjeto em que, ao menstruar, Carrie tem acesso a seus poderes telecinéticos. Esse despertar é turbulento e leva a personagem a uma espiral destrutiva. Eu era adolescente quando li esse livro e o que mais lembro é da minha indignação com o fato de que Stephen King descrevia cenas de menstruação de formas irreais. Tudo me parecia levemente esquisito: o modo de usar um absorvente, a sensação de se ter uma cólica, o volume do fluxo menstrual. A impressão que eu tive foi que ele conversou com uma raça alienígena sobre o que era menstruação e escreveu o que entendeu. Tá, alguns de vocês vão me dizer que Carrie é um livro de horror e que é pra ser tudo exagerado mesmo, mas vamos refletir então sobre esse lugar da menstruação como algo abominável e como é essa representação cultural que temos de forma mais comum, seja em uma história de terror, seja na piada da mulher menstruada descompensada.
Estamos acostumados com cenas de guerra e de tortura sendo representadas nas artes o tempo todo. Especialmente no cinema e no audiovisual, assistimos essas cenas como entretenimento. Comendo pipoca e tudo. Enquanto isso, cenas de menstruação e parto são consideradas cenas fortes, que devem ser vistas com discrição. Para escrever esse post, fiquei curiosa sobre como é a cena da menstruação do filme Carrie e acabei caindo num tópico do Reddit sobre o assunto. Detalhe: esse tópico é para maior de 18 anos. Vários gifs de menstruação vêm com o aviso de impróprio para menores também. Você clica no gif e é uma calcinha manchada de sangue ou uma mulher com sangue escorrendo pelas pernas. Que medo e nojo são esses dos processos que literalmente geram a vida?
Em 2019, organizei um debate sobre o documentário Absorvendo o tabu num núcleo de diversidade no campus do Instituto Federal que trabalhava na época. Esse grupo era formado por adolescentes do ensino médio e eles discutiam temas como raça, gênero e pautas LGBTQIAPN+ toda semana, mas o tema da menstruação foi um grande ponto de tensão.
Os meninos ficaram chocados porque não sabiam ou não entendiam a realidade de menstruar antes de terem visto o documentário, mesmo que morassem com mulheres cis a vida inteira. Nunca tinham pensado que sem acesso a um absorvente, uma menina não consegue ir para a escola. Não sabiam quantos dias durava uma menstruação, nem a quantidade média de sangue. As meninas do grupo começaram a ficar irritadas porque não conseguíamos avançar na discussão sobre dignidade menstrual porque os meninos não paravam de fazer perguntas básicas como, por exemplo, quanto tempo dura um absorvente, se ele fica solto ou preso na calcinha, como se coloca, se pode entrar na água com absorvente, o que é um absorvente interno, etc (imagina quando eles descobrirem os coágulos rs). Se metade do planeta passa por esse processo, por que a outra metade controla o discurso sobre isso ao mesmo tempo que não faz ideia do que está acontecendo?
Menstruação é só uma parte do ciclo menstrual e houve um tempo da história de nós humanos nessa terra que essa era uma fase para a qual se olhava com outros olhos. Os olhos da natureza. Menstruar é parte da experiência da humanidade como um coletivo porque todo mundo está aqui por causa de um ciclo menstrual e do desenvolvimento da menstruação na nossa espécie. Para o processo de reprodução humana acontecer, alguém com um ciclo menstrual gerou um óvulo.
Então onde está aquela cena em um livro de 890 páginas em que uma personagem está menstruada? Cadê as tecnologias da menstruação em uma space opera? E as representações de menstruação em um livro de fantasia que não seja só uma cópia daquela mentalidade Idade Média européia? Precisamos de menstruação em todo lugar. A ficção, especialmente, tem o poder de nos conectar com experiências que não são nossas de forma que conseguimos ampliar nosso repertório sobre o que é a humanidade. Naturalizar o ciclo menstrual envolve não só falar sobre ele, mas representá-lo repetidamente nas artes e mídias. É mudar paradigma mesmo, a forma de pensar. É difícil, mas pode ser muito poderoso.
Para mim entender esse ciclo dentro do meu corpo me permitiu abrir os olhos para os ciclos naturais que acontecem fora de mim. Me fez cultivar uma relação com meu corpo como parte da terra, como parte de tudo. Me ajuda a ver a beleza do mundo, a beleza dos processos e das coisas. Me ajuda a entender que não sou uma máquina, não estou igual todos os dias, que os ritmos mudam e tá tudo bem. A vida pulsa de muitas formas.
Outros pontos:
📚 Um livro que mudou minha perspectiva sobre a história do mundo, sobre o que entendemos como “sociedade natural” e “o mundo foi sempre assim” foi O cálice e a espada, de Riane Eisler. Eu indico muito, mas muito mesmo para quem quer saber sobre a humanidade antes do patriarcado, sobre os achados arqueológicos que mudaram a percepção sedimentada de que seres humanos sempre se pautaram na exploração, na guerra e na dominação. Eisler vai falar das sociedades igualitárias e baseadas na cooperação e como foram elas que consolidaram a civilização como conhecemos. É daqueles livros para ler marcando tudo!
📚 Falando mais do aspecto biológico e científico do corpo, indico Viva a vagina: Tudo que você sempre quis saber, de Nina Brochmann e Ellen Støkken Dahl. Esse livro explica TUDO. Tudo mesmo. É um manual incrível sobre todas as dimensões da experiência de quem tem uma vagina desde o funcionamento do ciclo menstrual, métodos contraceptivos, orgasmos e fluidos em uma linguagem bem acessível. Sabe aquela pergunta que você sempre quis fazer, mas fica meio com vergonha? Aqui elas respondem. E com embasamento científico! Recomendo para todo mundo mesmo, especialmente mulheres cis em idade reprodutiva. Gostei tanto desse livro que doei para a biblioteca da escola onde trabalho. Vamos ver se ele aparece na prateleira rs.
🌑 Hoje é Lua Nova. Já estamos na sexta lunação do ano. Nas representações simbólica de muitas culturas, a lua nova é associada à menstruação. Já a Lua Cheia, à ovulação.
Vou confessar uma coisa: optei por interromper minha menstruação. Já tentei diversas coisas: absorventes comuns, absorventes de pano, sem absorvente nenhum, mas nenhuma dessas formas acabou com o meu incômodo sensorial (sendo autista, a questão sensorial sempre me afetou muito). Agora que trabalho presencialmente, a questão piorou mais ainda. Antes era basicamente uma trabalhadora autônoma sem férias remuneradas, sem décimo terceiro e sem nenhum benefício, mas pelo menos tinha a escolha de optar por não trabalhar quando estava Menstruada (além de desconforto sensorial e cólicas, sentia muita fadiga). Claro que ganhava ainda menos por isso (recebia por tarefa concluída), mas ganhava tão pouco e devia pra tanta gente que nem fazia diferença pra mim. Meu emprego atual é infinitamente melhor, mas por ser presencial, não dá pra ir sem absorvente, e tenho que trabalhar mesmo menstruada. Eram 10h horas diárias de desconforto. Sem falar na fadiga. Podia tomar uns analgésicos e a cólica até passava, mas a fadiga não. Aí as 9h que já eram tediosas se arrastavam ainda mais devagar enquanto eu trabalhava (ou fingia que trabalhava, porque não tinha jeito). Tendo interrompido a menstruação, me sinto muito melhor. Sem dor, sem desconforto sensorial, sem tédio extra no trabalho, sem ter que deixar o lazer e o descanso de lado (seja porque estou menstruada, seja por ter de pagar pelas horas de improdutividade caso optasse por me ausentar quando estivesse menstruada). Tem gente que me julga por essa decisão, especialmente por um dos efeitos colaterais dos remédios ser engordar (eu já era gorda quando comecei a tomar, então não sei se tive esse efeito colateral). Mas a minha saúde está boa, os meus exames estão em dia, então seguirei com essa decisão enquanto ela for a melhor para mim.
No mais, adorei o seu texto. Temos sim que normalizar falar de menstruar (ou de não menstruar), inclusive para menores de idade, pois em geral menstruamos no começo da adolescência.
Muito importante seu relato. Obrigada por compartilhar! Também acho que falar de menstruação é também falar da opção por não menstruar e dizer que não há vergonha nisso. Infelizmente, vivemos numa realidade que é muito indigna para quem menstrua. Eu fico pensando que se fôssemos uma sociedade que contemplasse a menstruação, será que não teríamos mais opções de produtos higiênicos para pessoas com os mais variados níveis de incômodo sensorial? Mais pesquisa e divulgação de formas para alívio dos sintomas? Ou mesmo mais opções de interrupção do ciclo menstrual? Fica o questionamento.
E sim, precisamos normalizar a menstruação com menores idade, inclusive crianças. É um processo natural do corpo, afinal.