🌳 Na semana passada eu mudei de cidade. O processo foi estressante, como sempre são as mudanças, principalmente as que envolvem dar continuidade à vida em um outro lugar. Eu já imaginava que não sentiria falta da cidade em si, que já estava me expulsando nos últimos meses, mas eu sinto falta da árvore. Sim, minha amiga árvore.
É muito estranho não tê-la na minha rotina.
No final de 2023, eu vivi um dos períodos mais desafiadores da minha vida. Após muitos anos adormecida, minha asma voltou com força total. Me vi de novo uma menina usando bombinha todo dia de manhã e uma adolescente indo a consultas com pneumologistas que a cada hora pareciam mudar de ideia sobre o tratamento. Voltei a tomar corticoide diariamente, a ficar vigilante, sempre atenta se algo poderia desencadear uma alergia que ativaria uma crise asmática. É difícil descrever o desespero de ficar sem ar, de puxar e puxar e nada vir. Eu fiquei à deriva de uma forma que não achava que estaria mais como mulher adulta.
Minha relação com o trabalho também não estava boa. Estava trabalhando dezesseis horas por dia. Não tinha fim de semana direito para descansar porque as tarefas se acumulavam num ritmo assustador. Mais de uma vez fui ao hospital na hora do almoço fazer inalação antes de ir para o campus. Durante as aulas, tinha que parar e ficar sentada uns minutos, recuperando o fôlego. O inalador voltou para o bolso. E em meio a essa crise que se arrastou por meses, meu esposo ficou doente e eu me vi tentando equilibrar minha saúde, meu trabalho exaustivo e os cuidados com ele. Zero surpresa quando digo que comecei a passar mal de ansiedade enquanto dirigia. Foi aí que conheci a árvore.
Lá estava ela, logo na saída do bairro. Uma afronta ao asfalto. Todos os dias eu passava pela árvore e algo em mim se movia. Comecei a reparar em seu tronco largo, sua copa frondosa. Com o tempo, descobri que suas flores eram rosa e que depois umas buchinhas apareciam. Vi o passar das estações nessa árvore, sua dança graciosa com a vida. Ela se tornou minha companhia diária. Sempre sorria ao vê-la, como quem recebe notícia de uma amiga querida.
Por muitas vezes, quis descer do carro e encostar em seu tronco, abraçá-la, mas algo sempre me impediu. Talvez ainda não tivéssemos intimidade o bastante. Talvez a nossa intimidade fosse de outra ordem. Só sei que eu e a árvore criamos alguma coisa. Voltando do trabalho, exausta, às onze da noite, eu passava por ela e tínhamos uma conversa silenciosa. Ela me amparava, me fazia rir, me fazia sentir que estava conectada à própria vida.
Nos momentos mais difíceis da minha vida, eu olhava essa árvore e imaginava como era experimentar o mundo como árvore. Como era o passar do tempo, o sentir das coisas. Presenciar a vida de um outro jeito. Tendo folhas e galhos, e raízes e seiva, ao invés de um cérebro desenvolvido dotado do que chamamos de consciência. Que tipo de consciência desabrocha da árvore?
Algumas vezes, no trajeto para o supermercado ou alguma outra rota cotidiana, brincava com meu esposo e dava a ela um nome: Rebeca. Olha a Rebeca aí, nesse dia de sol quente. Olha a Rebeca debaixo de chuva. Dando flor. Buchinha. Balançando os galhos. Meio careca por causa do inverno. O nome veio da placa com as iniciais RBL pregada em seu tronco (que não sei o que significa, mas tem várias árvores na região que compartilham essa plaquinha). Sempre achei que a árvore não ligava para isso. Afinal, ela está ali a tantos anos. Talvez décadas. O que é um nome para quem já viu tanto mundo?
Não sei a espécie da árvore1, mas acho que ela é nativa da Mata Atlântica, ou pelo menos do que sobrou dela no interior de Minas Gerais. Deve ter visto muitas companheiras partirem, animais irem e virem, ondas de calor e chuvas fora de hora, humanos chegando com suas coisas estranhas. E me viu. Todo dia passando ali no meu carrinho vermelho todo sujo de minério. Por alguns segundos alguma coisa acontecia em que árvore e humana diziam coisas impossíveis.
Sinto falta dela. É uma coisa estranha, difícil de explicar. Não é só a visão de sua beleza, mas é a companhia. Uma árvore pode ser uma espécie companheira? Como que a gente faz com esse sentimento que a nossa cultura nem reconhece, muito menos diz? E eu fico pensando quanta coisa existe nesse mundo que é a árvore e o quanto que se perde quando falamos que nós somos nós e elas são apenas árvores.
Só sei que eu fiz amizade com uma árvore. E eu tô com saudade da minha amiga.
🌕 Estamos no finalzinho da Lua Cheia da terceira lunação do ano. E vocês? Como tá sendo esse começo de outono?
Talvez ela seja uma paineira-rosa. Aceito palpites e correções dos especialistas e amantes de plantas.