🌎 Em meados de setembro, o Substack lançou uma espécie de túnel do tempo/retrospectiva de leituras bem alinhada com a proposta de fazer desse lugar uma rede social: o Substack Summer. A ideia, bem divertida, era fazer um top 3 das leituras de verão. Uma brincadeira com essa coisa de levar um livro pras férias na praia, só que com newsletters. Legal, né? Vamos compartilhar o que lemos nos últimos meses! O problema é que, em literalmente metade do planeta, não era verão.
E eu fui reclamar, como a tuiteira millennial que no fundo sou.
Como toda polêmica que acontece por aqui, as pessoas foram, em geral, educadas e colocaram argumentos sólidos. Teve gente que achou paia, teve gente que achou desnecessário, teve gente que não ligou. De minha parte, fiquei profundamente incomodada. Ah, mas é só mais um exemplo do pensamento hegemônico do Norte global que nos empurra suas convenções e sistemas a partir do imperialismo cultural. Sim, mas o buraco é mais embaixo.
A maioria de nós no hemisfério Sul está completamente desconectada das estações do ano1. Eu já falei um pouco disso aqui, mas esse é um assunto que vive rondando minha cabeça, então vocês acabam pegando essa coisa toda de rebote. O que significa ser verão e ser inverno onde estamos? Quais são nossas referências em relação à natureza que nos envolve e como essa natureza se comporta ao longo das estações do ano?
Uma das minhas artes favoritas é Nosso Norte é o Sul, da artista colagista Elisa Riemer. Como em várias obras dela, existe nessa uma centralidade de mulheres e da vivência latino-americana, bem como uma experiência alquímica de alguma forma sendo representada. Não é só o mapa invertido. Essas mulheres se abraçando, vindas de dentro da própria terra, expressam um reencontro sofrido, mas reconfortante. Elas contam uma história de luta, perda, dureza e também de amor, autenticidade, verdade. Talvez a gente precise desse reencontro no nosso lugar no mapa. Talvez a gente também queira o abraço que vem da nossa terra.
Essa frase “Nosso Norte é o Sul” não é novidade e estampa camisetas e cartazes de movimentos sociais na América Latina. A autoria é do artista uruguaiano Joaquín Torres García que, em 1943, no desenho “América Invertida”, propôs que olhássemos para nosso continente de uma outra perspectiva. Afinal, o Norte em cima é apenas uma convenção dos cartógrafos. Porque somos, no final das contas, uma bola de pedra em chamas girando no espaço em alta velocidade, onde referências como pra cima e pra baixo não fazer o menor sentido, né? Né?
Em 1973, a NASA divulgou a fotografia “Blue Marble”, uma foto colorida de alta qualidade tirada pela Apollo 17. A imagem, impressionante, que povoa nosso imaginário do que é nosso planeta até hoje, só tinha um pequeno problema: estava de “cabeça para baixo”. Para não confundir as pessoas, a imagem foi invertida e então divulgada. O motivo? O Norte não estava “para cima”.
Associamos os pontos cardeais tradicionalmente da seguinte forma: Norte é para cima, Sul para baixo, Leste para direita e Oeste para esquerda. Mas nem sempre foi assim. Durante parte do mundo antigo, os mapas tinham a direção Leste para cima, simplesmente porque lá que nascia o Sol, sendo um ponto observável. Os antigos egípcios colocaram o Sul como topo do mapa por causa da direção do Nilo. É por isso que o Baixo Egito fica “em cima” do Alto Egito e não o contrário.
É, foi o colonialismo. Vocês já sabem onde eu vou chegar. Com as Grandes Navegações (não vamos deixar de notar que tem uma caravela se aproximando no desenho de Torres Garcia), os europeus trouxeram o padrão de Norte como “cima”. Não só porque eles se guiavam tradicionalmente pela Estrela Polar, um ponto ao Norte, mas também porque a Europa estava ao Norte e “em cima” começou a ganhar todas as associações que conhecemos como estar melhor, mais desenvolvido, mais importante. Inclusive, o verbo “nortear” significa significa justamente “tomar o rumo certo”.
Essa herança deixou as coisas muito estranhas aqui no hemisfério Sul. E não é só Natal no Verão e Substack Summer, mas é às vezes uma completa desconexão com a natureza que nos cerca, em como ela se comporta e os significados culturais hegemônicos que isso pode ter. Dias atrás, por exemplo, foi Halloween, que o cristianismo tentou deslocar aí para o Dia de Finados. Essa é uma data introspectiva, uma data de outono, de honrar os mortos. Os dias ficam mais escuros, mais frios. Em alguns lugares as plantas começam a secar, a paisagem nos lembra que tudo morre. Mas aqui no Sul, em 31 de outubro/1 de novembro, estamos na primavera, onde costuma estar muito quente durante o dia, com bastante sol, e chovendo durante a noite. A conexão ancestral entre a natureza e uma atividade cultural está quebrada.
Não estou dizendo para jogar tudo isso no lixo, embora às vezes eu tenha vontade. Engajar com essas datas faz sim sentido culturalmente. Para algumas pessoas pela questão religiosa e para outras pela tradição já sedimentada. Elas estão no nosso imaginário. Tá tudo bem. O problema é quando marcos das estações e referências da naturezas são jogadas guela abaixo e a gente só reproduz, sem sequer olhar pro lado de fora da janela e dizer: peraí… eu acho que não é bem assim. Talvez seja diferente.
Como é contar e ouvir histórias de terror no meio da primavera? Como construímos nossas referências e o que significam essas datas a partir da natureza que nos rodeia? E se não for um visgo no inverno, mas uma folha de palmeira no verão? E se o chá for gelado, de erva mate, numa noite que tá chovendo pra caramba, enquanto a sombra assustadora lá fora é do jequitibá? Onde estão essas histórias? Quem vai começar a contá-las se não formos nós, no nosso abraço apertado, aqui na nossa metade do mundo?
Afinal, uma bússola também aponta para o Sul. Escolher colorir o Norte da agulha é só isso: uma escolha.
Outras questões para quem está abaixo da linha do Equador:
👩🏾 Para quem procura uma forma emancipadora de discutir autocuidado, prazer e autoconhecimento com aquele toque místico referenciado nos saberes afro-indígenas, recomendo o trabalho da Caroline Amanda na Yoni das Pretas. A Carol oferece um trabalho sério, politizado, mas que tem aquele encanto, aquela magia preta mesmo, ao trabalhar com os arquétipos das estações do ano, das fases da lua, das fases da nossa vida. Aprendi muito esse ano a organizar minha agenda e minha vida a partir dessas questões que fazem muito sentido pra mim. Me sinto conectada ao fluxo da vida e isso pra mim foi libertador.
🌺 Se não é Halloween aqui no Sul, é o quê? Bem, se formos seguir essa dança neopagã das estações do ano, vamos para o extremo oposto, que é Beltaine, a celebração do desejo da vida. Alta primavera. Como é esse tempo aí onde você mora? Aqui no interior de Minas Gerais é quente, chove um bocado, os insetos estão meio malucos, os bichos começam a sair pra procriar. O céu azul aqui fica lindo quando as nuvens abrem espaço. A chuva é gelada, mas quando chega no chão, às vezes sobe aquela fumacinha. Tem dias que tem que usar moletom e outros em que o calor é tanto que uma blusinha parece muito. É mesmo o tempo de apreciar a beleza da vida e a pulsão que existe nela.
🌑 Já estamos na décima lunação do ano! É cliché falar que o ano tá indo rápido, mas nossa, está mesmo! E fico muito feliz com o crescimento aqui da news! Obrigada, pessoal, por estarem aqui comigo nesse lugar esquisito e devagar da internet. :)
Aproveite também para ler essa antologia lunar deliciosa que tem conto meu!
É bom deixar claro que estou falando aqui de nós ocidentalizados. Povos indígenas e outras culturas afro referenciadas têm uma relação muito mais lógica e direta com a natureza e as estações.
Todo natal entro em agonia. Como decorar/escolher um cardápio que seja adequado ao clima daqui? Ao mesmo tempo, todo o imaginário construído há tantos anos (as cores, a neve, a lareira) parece tão *natalino* e, por construção mesmo, acho lindo. Me lembro de uma live de Caetano que ele fala do natal em Santo Amaro, das folhas de pitanga enfeitando os presépios. Fico sonhando com outras referências para a festa. Mas no São João, aí sim! Sou baiana e tá aí uma festa muito correspondente à estação. Tempo de colheita, principalmente do milho, e das temperaturas mais baixas que combinam bem com as comidas, a fogueira e forró agarradinho. Fiquei pensando em que outras festas populares também são assim. Claramente - embora importado - o carnaval no auge do verão deu certo DEMAIS aqui nos trópicos.
Amei essa leitura, principalmente as referências que eu não conhecia ainda, como a colagem e o blue marble. 🩷 Eu sou da região amazônica e a maneira que a região reage às estações é diferente.
Quando é julho estamos no "verão amazônico", o período mais quente do ano. E a partir de dezembro entramos no "inverno amazônico", que é um período mais chuvoso e com temperaturas amenas. Agora com as mudanças climáticas certas alterações estão ocorrendo, mas antes tínhamos um dizer certeiro "no verão chove todo dia e no inverno chove o dia todo" 🌧️
Lembro de sentir essa desconexão que você relata, quando o inverno chegava e ao ir nas fast fashion do shopping se via coleções de verão expostas quando a maioria das pessoas estavam vestindo moletom/roupa comprida. Parecia uma total ignorância da marca para com a minha região. Hoje em dia a C&A, por exemplo, pelo o que eu percebi já se adaptou à essa peculiaridade da região. ☺️