Depois de seis anos de relacionamento, a cantora e compositora Taylor Swift e o ator Joe Alwyn terminaram. A internet surtou. Os cinco estágios do luto foram vividos coletivamente. E agora uma nova notícia parece abalar as estruturas online novamente: Taylor Swift parece que está namorando com Matty Healy, vocalista da banda 1975.
Mas o que é um fenômeno de fofoca de celebridade com conteúdo click bait ganha uma vida completamente diferente no mundo dos Swifties: agora é preciso analisar minuciosamente todas as letras de música de Swift desde 2017, entender por que ela terminou com Joe Alwyn, se em algum momento ela estava traindo Joe com Matty Healy, se ela deixou alguma pista que pode nos levar a entender o que estava acontecendo em sua vida amorosa. Um tipo de autópsia de relacionamento em forma de análise de letra de música.
Mas Melissa, que tem a ver a vida pessoal da Taylor Swift com uma newsletter supostamente sobre literatura? Bem, vamos falar das consequências de ligar a sua vida à sua obra.
Desde os primórdios de sua carreira, Taylor Swift deixou muito claro que estava ali para contar da sua própria experiência. Foi isso, inclusive, que fez com que seu primeiro álbum, Taylor Swift (2006), saísse por uma gravadora. A ideia era narrar a vida de uma adolescente enquanto ela acontecia, com suas dores, delícias e desilusões. Para chamar atenção para o que acreditava ser o seu grande diferencial, Swift colocava mensagens escondidas (os famosos easter eggs) nas letras do encarte do CD, onde os fãs mais dedicados podiam encontrar códigos que apontavam para quem a música tinha sido escrita, o que ela estava pensando na época e quais ensinamentos essas músicas tinham para passar.
Esse apelo funcionou e o próximo álbum, Fearless (2008), que seguiu a mesma lógica, ganhou um Grammy. Os easter eggs então saíram dos encartes de CD e ganharam também a vida real: Taylor escrevia nos braços letras de música e frases para comunicar aos fãs o que estava sentindo durante os shows e escrevia mensagens crípticas nas então recém-nascidas redes sociais. Em alguns anos, uma roupa, um chapéu, uma frase falada numa entrevista com uma ênfase diferente: tudo isso virava material de especulação entre os fãs. A vida de Swift e as letras das músicas dela se tornaram uma coisa só.
Mas o que acontece quando a sua arte é interpretada pelas lentes da sua vida?
Não demorou que os tabloides começassem a se utilizar dessa relação música/vida que até então era entre Taylor e seus fãs e que Taylor Swift se tornasse um produto a ser consumido: sua vida, seus gostos, seus medos, seus sonhos e, por que não, seus relacionamentos, que tinham inclusive um carimbo da verdade - suas músicas podiam confirmar tudo. O link entre Taylor Swift, a artista, e Taylor Swift, a pessoa, se tornou transparente.
E olha, Taylor nem sempre foi sutil em relação a isso. Nos primeiros álbuns o nome de seus interesses amorosos estavam literalmente na letra. Ela fez uma música chamada “Style” logo depois que notoriamente terminou com Harry Styles. Assim, não precisa ser muito gênio pra sacar essa.
Mas em 2016, depois que Swift foi cancelada nas redes sociais, pouco ou quase nada se sabia do namorado Joe Alwyn. Os dois não comentavam sobre a relação. O que sobrou? A música. Todas as músicas de amor escritas de 2017 em diante foram associadas a Joe e foi pela música que os fãs saciaram sua necessidade de saber o que se passava na vida pessoal de sua cantora-compositora favorita.
Esse fenômeno não é recente. No século XIX os críticos literários buscavam a compreensão sobre uma obra a partir da vida dos autores. Machado de Assis escreveu sobre uma mulher adúltera: teria ele levado um chifre da esposa? Essa pergunta já foi séria dentro dos estudos literários. Mary Shelley escreveu um livro tenebroso: será que uma jovem de 19 anos poderia escrever sobre algo tão sombrio? (spoiler: é possível).
Até hoje se vende filmes e livros “baseados em fatos reais” ou mesmo ficção história, que supostamente vai contar exatamente como foram os eventos proeminentes da História. Sim, a com letra maiúscula. É fácil tomar a série da Netflix The Crown como fato e não ficção. Quando celebridades como Shakira e Miley Cyrus lançaram músicas explicitamente sobre uma catarse pessoal sobre seus relacionamentos amorosos o sucesso foi estrondoso. Nós amamos a ficção que se diz ser real.
Tem até aquele conselho para escritores que diz “escreva sobre o que você conhece”. Eu sempre fiquei encucada com isso. O que é conhecer? É o que eu vi? Vivi? Testemunhei? Aprendi? A escrita cria essa sensação de autenticidade, de revelação de alma. Quando eu era adolescente, eu não queria que meus pais lessem minhas fanfics. Imagina? Mas ao longo do tempo eu vi que essa relação é muito mais complicada do que parece. A escrita tem algo de nós, de pessoal, isso é inegável, mas a relação não é tão transparente. Não dá pra presumir que se conhece alguém pelo que essa pessoa escreve por mais que seja confortável achar que sim. Por mais que a pessoa que escreve tenha dito que sim. Escrita e leitura são um jogo.
As músicas que Taylor Swift escreveu sobre seus namorados contam mesmo a história do relacionamento deles? Alguns vão dizer que contam a versão dela. Mas ainda assim, será? É possível reconstruir a vida através da arte? E ainda mais: é justo?
Se alguém fizer uma análise da relação vida e obra dos meus contos publicados entre 2013 e 2019 vai chegar à conclusão que todas aquelas jovens mulheres tristes só pode significar que eu fui uma adolescente deprimida. Verdade? Bem, talvez sim. Mas tem mais que isso. Quando escrevi "Noites negras de Natal" para a nova edição do livro de contos do mesmo nome, eu usei a escrita como um exorcismo emocional sobre uma relação real que eu vivi. O que tem ali de verdade ou falso? (bom, já adianto que a viagem no tempo não é verdade.)
Essa é a beleza da escrita também: eu transformei uma das coisas mais difíceis que eu já passei em outra coisa. Eu nunca fiquei hospedada numa casa assustadora, nunca participei de uma competição de dança, não sei desenhar, não atirei ninguém de uma escada (que isso fique claro), nem fiquei internada num hospistal sob investigação da polícia. Ainda assim, o conto é sobre uma das coisas mais pessoais que já aconteceram comigo. Tenho dificuldade de reler porque ali estão os meus maiores medos, minhas maiores dores, de um jeito tão cru e exposto que me incomoda. Mas ainda é totalmente ficção. Como é que isso é possível?
Mas ao contar isso aqui para vocês agora eu criei um fator Taylor Swift: deixei explícito o link entre a minha vida e minha obra. Agora as pessoas vão poder procurar detalhes no conto e se perguntar se aqueles personagens são pessoas que eu conheci ao longo da vida. Ficar avaliando o que pode ser fato e o que só pode ser ficção.
Mas não deixo de pensar no quão empobrecedor esse processo é: nessa toada, não há espaço para pensar no efeito que o conto tem sobre leitores. O que te causa ler sobre aquele casal numa casa maldita, que dores suas vêm à tona? O que te vem à mente quando você ouve sobre o casal viajando de carro à noite em “Style”? O que tem sobre você ali também?
Escrever revela, mas ler também.
Para quem quer pensar em outros efeitos de ter sua vida atrelada à sua obra, tem esse episódio do podcast Lasciva Lua, em que entrevisto Lua Menezes sobre seu livro erótico de autoficção, Rio Profano.
Perfeito, o texto! Principalmente porque eu amo Taylor Swift e fico um pouco assustada com o quanto as pessoas se tornam obcecadas pelos easter eggs e associam isso a vida dela e a sinais, verdades, coisas que ela não pode falar explicitamente, etc (depois que descobri o segmento de fãs que se intitula Gaylor então...). E embora eu ache sim legal associar as letras as pessoas, uma das coisas que mais amo é que muitas das letras são facilmente associadas a minha vida. Tanto que Folklore/Evermore é quase 100% fictício e ainda é perfeito.
Sobre a escrita, é ainda mais complexa essa associação pq a gente coloca pinguinhos da gente, mas expande para muito além, né? Tipo, quem escrever thriller não é um serial killer HAHAHAH... O povo não entende as vezes que escrever não é diário.
Nossa, esse conto é pesadíssimo, mas engraçado que quando eu li, mesmo sabendo toda a tua história por ser tua amiga, não fiquei catando no conto o que era você ou quem eram as pessoas, apenas li entrando nos sentimentos dos personagens do conto, apesar de saber que tinha várias coisas tuas ali. Acho que é como você disse, sim, escrita tem muito de quem escreve, mas não tudo. Ainda é ficção.
(E isso me fez lembrar daquele conto da Poliana que eu escrevi e fui taxada de radfem por algumas pessoas hahahaha... Eu hein, credo.)