🖊️ Eu lembro exatamente do dia que a minha escrita mudou. Faltavam poucos dias para o Natal de 2020 e eu estava escrevendo um conto de terror. Era meio da tarde, até que bem fresquinho. Um costumeiro dia preguiçoso no interior de Minas. Eu escrevia no sofá da sala da casa dos avós do meu esposo, meio largada no sofá. Ele estava jogando videogame. Na minha cabeça é Breath of the Wild. A gente em isolamento pandêmico naquela casa e eu escrevendo porque era a única coisa que eu podia fazer. Terminei um parágrafo e reli o que tinha escrito. Na hora, parecia que eu tinha visto uma assombração. De quem era aquele conto? De onde aquilo tinha saído? E aos poucos um sentimento meio esquisito se assentou: é, minha escrita tinha mudado.
Eu tinha 31 anos. Numa pandemia. Parece meio idiota a surpresa com a mudança, mas escritores passam muito tempo preocupados com coisas como encontrar uma voz, melhorar técnicas e blá blá blá. Então ser confrontada com uma escrita outra foi, no mínimo, atordoante. O que mudou? É difícil apontar, mas a forma de escrever a frase, a estrutura do parágrafo, o ritmo, as imagens, abordagem dos personagens, nada daquilo ali era comum na minha escrita anterior. Sim, eu conseguia me reconhecer, tinha muito do que era familiar, mas o arranjo era diferente.
Freud deu um nome para esse sentimento: unheimlich. Claro que é uma palavra em alemão esquisitona. Mas ela define algo muito comum na nossa experiência: o sentimento de angústia ao nos depararmos com uma coisa que é paradoxalmente familiar e estranha ao mesmo tempo. Todos já estivemos nesse lugar. Mas confesso a vocês que foi unheimlich ao máximo sentir isso com minha própria escrita.
O conto em questão se chama “Noites negras de Natal” e foi publicado na edição comemorativa do livro de contos de mesmo nome, que publiquei inicialmente com a
em 2012, o ano que inaugurou nossas vidas literárias. Então é no mínimo freudiano que o conto que mudou minha escrita esteja justamente em uma das obras que considero iniciadoras do meu trabalho como escritora. Numa psicanálise selvagem, dá até para dizer que ali eu confronto meu eu iniciante e os temas do livro (depressão, não-pertencimento e angústia) de outras formas, mas eu juro que nada disso estava se passando pela minha cabeça naquela tarde. Eu só estava escrevendo um conto para que finalmente o título do livro Noites Negras de Natal e outras histórias fizesse sentido (longa história).O que fez esse conto diferente? Já contei aqui como ele é uma elaboração fantasiosa de algumas experiências da minha vida, e talvez tenha mais algo a ser dito sobre isso, mas não acho que seja o produto final, a história publicada, que seja a questão. A mudança na minha escrita tem muito mais a ver com o processo, com a forma como esse conto foi escrito. E aqui chego em dois pontos: a alegria de criar e o uso do corpo.
Desde esse conto escrevo com alegria. Em 2023, lembro da euforia experimental de escrever “Palavras Insuficientes”, conto que foi para a antologia O céu não é o limite, da agência Magh. Esse ano também foi com empolgação e muitas risadas que terminei “Departamento de burocracia e licantropia”, da coletânea A lua é sempre a mesma. Isso do que foi publicado. De 2020 para cá, fui muito feliz trabalhando em uma fantasia urbana e na reescrita de algo que está vindo por aí, mas que não vou contar agora (misteriosa ela rs). Até mesmo alguns dos meus artigos acadêmicos foram escritos de um lugar de tranquilidade que eu nem sabia que existia. A era do sofrimento da escrita acabou. E isso não quer dizer que não exista mais bloqueio criativo, ansiedade, desânimo, mas só que não glorifico mais isso na minha escrita. Não faz mais sentido para mim. O mais incrível foi que isso se refletiu no meu estilo. É como se eu estivesse finalmente à vontade.
O que me leva à questão do corpo. Escrever rindo, chorando, sentindo a raiva subindo pela garganta, a tristeza devastando tudo por dois segundos. Tudo isso começou a aparecer durante meu processo. Não que não acontecesse antes, mas não era frequente. A preocupação e o sofrimento com a escrita em si tomavam conta de tudo: o desespero com prazos, com a revisão (mesmo que ainda não fosse a hora disso), com o que os outros iam pensar, com como nada parecia estar do jeito que eu queria. Tudo isso tomava muito da escrita e tornava o processo muito difícil. Meu corpo era travado e a minha mente ficava a mil, rodando em círculos, sem nunca encontrar um fluxo que fosse sustentável.
Eu escrevia em ciclos de descontrole desde a adolescência: eu queria tirar aquilo de dentro de mim, queria terminar. Ao fim do processo, ficava exausta, revisar era um suplício. Não tinha mais energias para nada. Ficava um bom tempo sem escrever. Até que a urgência criativa ou algum prazo me forçavam a começar de novo. Por um tempo, eu realmente acreditei que eu era uma escritora que odiava escrever, mas que continuava porque precisava. Quase numa sina romântica.
Não sei bem o que aconteceu naquele dia antes do Natal de 2020, mas eu estava… relaxada. Talvez escrever sobre uma das piores experiências da minha vida durante um período tão horrível da história da humanidade tenha destravado algo em mim. Mostrado para o meu corpo que se eu consigo escrever nessas circunstâncias, então todo o resto é fichinha. Talvez isso seja eu fazendo psicanálise selvagem de mim mesma de novo. Talvez tenha sido a crise dos 30 anos. Ou talvez eu só tenha amadurecido. Mas a minha escrita mudou e isso foi muito libertador.
A gente se esquece que escrever também é algo corporal. É como tocar violão por vários anos com o dedão na posição errada. Um dia temos um insight e mudamos a posição do dedo. E isso muda tudo! Começamos a tocar fica mais leve e tudo flui de um jeito muito melhor. De repente, fica até fácil testar coisas que nunca fizemos antes. No fim das contas, pode nem ser que a minha escrita tenha mudado. Talvez eu só nunca tenha deixado que ela fosse mais longe.
Mudar é estranho, mas faz a gente se reconhecer também.
Processos:
🎦 Eu gosto muito de conhecer um pouco mais sobre as circunstâncias que fazem autoras e autores mudarem de ideia e fundamentalmente alterarem seu processo ou modo de ver o mundo. Acho que uma das escritoras que mais fez isso às claras foi a Ursula K. Le Guin, uma das minhas favoritas. Ao longo da vida, ela revisitou muito de sua obra, refletiu abertamente sobre seus limites, e escreveu ainda mais para além deles. O documentário Worlds of Ursula K. Le Guin discute muito esse processo, especialmente como a visão de magia e gênero mudou nos livros de Earthsea (Terramar, em português) e como ela reviu o que significava ser mulher dentro de sua própria obra. É um pouco chatinho encontrar esse doc, mas vale muito a pena.
📕 Livro Tudo sobre o amor, da bell hooks. Pare. Pare tudo que estiver fazendo na sua vida agora e coloque uma nota para ler esse livro no futuro. Já recomendei essa autora por aqui, mas dessa vez o buraco é mais embaixo. Esse livro é um atropelamento em forma de reflexão. bell hooks vai explorar o significado de amor muito além do amor romântico e nos fazer pensar sobre o processo de amar. O que envolve realmente amar? E o que podemos fazer para amarmos e sermos amados? O aviso é que esse livro remexe com todas as estruturas. Prepare-se.
Queremos conhecer o amor. E temos medo de que o desejo de saber muito sobre ele nos aproxime cada vez mais do abismo do desamor.
bell hooks, Tudo sobre o amor: novas perspectivas.
🌑 Hoje é a quinta Lua Nova do ano. O que está mudando por aí?
Engraçado que foi eu já sabia de qual conto e momento você estava falando só de ler a primeira linha da notificação da newsletter! hahahaha :)
Gostei muito de ler isso, Mel. Fico feliz que tu tenha se encontrado assim na escrita. Eu gosto da Mel de antes, mas gosto mais ainda da Mel de agora. E fico ainda mais feliz por ter estado presente nas duas épocas. Tomara que eu também me encontre assim na escrita um dia, ou quem sabe fora dela.