🧑🏽🎨 Imagine a cena: você ouve uma música nova ou lê um livro empolgante e aquilo te toca de alguma forma. De repente, você sente aquele coração acelerado e aquele quentinho que diz que sim, você acabou de descobrir uma arte nova que gosta. Você dá um sorriso. Mais uma coisa para a lista do que se conecta com você. Mas então, de repente, uma pulsão inquieta toma conta do seu corpo e uma força estranha te faz abrir a Wikipédia. Agora você precisa saber: será que aquela coisa que você gostou tanto foi criada por uma pessoa que defende coisas terríveis?
Quem nunca?
Meu primeiro contato teórico com a ideia de separar a arte do artista foi na faculdade. E aqui a galera da graduação em Letras vai revirar os olhos comigo quando cito Roland Barthes e seu infame texto “A morte do autor.” Mas vamos, por favor, considerar que era 2008, não tinha vídeo-ensaio a torto e a direito sobre o assunto no Youtube e eu tinha que fazer uma prova. Com texto marcadinho e fichamento em dia, achei uma ideia ótima. Quem se importa se o autor é um grande imbecil? Vamos analisar o texto. É o texto que importa! Sou eu, a leitora, que vou criar significado nisso aqui. Eeeeh!
Meu primeiro contato emocional com a ideia de separar a arte do artista foi bem diferente. Uma das séries que mais me marcou na vida foi As Brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley. A adolescente que fui é profundamente impactada por essa história, personagens e reflexões. Eu digo, sem nenhum medo, que ler essa série me afetou de formas tão fundamentais que não sei se minha relação com a literatura seria a mesma hoje se eu não tivesse lido esses livros. E aí eu descubro que a autora abusava sexualmente da própria filha e era cúmplice dos abusos de outras crianças realizados pelo marido. Olha, não tem Roland Barthes que dê conta de uma coisa dessas. É doído, é revoltante.
[Aqui vale ressaltar um pequeno interlúdio: pessoas como Bradley são criminosas e deveriam ser tratadas sempre como tal. Não há discussão sobre isso. O que resta é pensar um pouco sobre o momento cultural que vivemos e porque sofremos essa angústia ao tentar desatrelar arte do arista.]
No imaginário cultural de grande parte do ocidente é muito difícil separar uma pessoa da obra que ela cria. Para nós, essas duas coisas estão inexoravelmente ligadas e é por isso que pensadores como Roland Barthes insistiram tanto nessa separação e focaram tanto no texto. É um movimento difícil e, para a crítica literária acontecer, é preciso que haja essa cisão de alguma forma. A questão é nem tudo nessa vida é crítica. As pessoas têm relações pessoais com a arte e essa relação passa sim pelos artistas e o lugar que eles ocupam no nosso imaginário.
Mas isso nem sempre foi assim. Ninguém se importava, por exemplo, que um bardo medieval fosse um ser humano desprezível. Na verdade é bem possível dizer que a maioria deles era se olharmos com os olhos do século 21, mas no imaginário da Idade Média levar isso em consideração não fazia sentido. A relação das pessoas com arte nem sempre foi pautada pela pessoalidade.
Por muito tempo o que valia era a experiência coletiva. A música criada por um bardo era cantada por tantos outros, que modificavam aquele texto, e a música ganhava vida quando era cantada em outros lugares. Poemas eram recitados e a memória humana, um tanto quanto falha, ia mudando uma coisa aqui e outra ali. A experiência de contato com a arte tinha essa dimensão menos pessoal e mais coletiva: uma festa, uma apresentação, um teatro. Não importava tanto quem criou.
A ideia de direito autoral é bastante recente na história da humanidade. Coisa do século 18. Mas direito autoral, a ideia de pagar alguém por sua criação e não reproduzir a coisa por aí sem esse pagamento, ainda é muito diferente de uma relação pessoal que temos entre arte e artista. Essa noção de que a arte é uma expressão do ser e que se conectar com uma obra é se conectar intimamente com seu criador veio com a galera do Romantismo. Sempre eles. rs
Paixão. Beleza. Intensidade. Expressão individual. A arte como uma parte inseparável daquele que a criou. Para os Românticos, artistas são diferentes dos seres humanos “comuns”. Eles têm uma sensibilidade a mais, são especiais, únicos. Até vivem de uma forma diferente. O artista dá um pouco de si, da própria alma, para sua obra. As duas coisas são inseparáveis. O processo é sofrido, mas é o preço a se pagar pela arte. Adeus processos coletivos, olá minha-arte-minha-vida.
É 2024 e ainda estamos afundados em ideias Românticas (sim, com R maiúsculo, que é pra falar do movimento). A cultura mainstream é cheia dessas noções do artista sozinho, decante, criando uma obra de arte incrível que é uma expressão única de sentimentos contraditórios e intensos desse ser humano que não é como todo mundo. Já falei um pouco disso aqui. As histórias que lemos e assistimos ainda estão muito relacionadas ao modus operandi dos Românticos. Aposto que enquanto lia isso aqui você pensou em pelo menos três exemplos de filmes/livros que partem dessas premissas.
Por que o Romantismo ainda perdura? Por que quase duzentos anos depois ainda estamos nesse imaginário? Uma resposta é que movimentos artísticos não são cortes no tempo como aprendemos na escola. Não tem uma data certa e pronto, acabou, ninguém mais fala sobre isso. Uma outra resposta é que o capitalismo (esse deixa em letra minúscula mesmo porque não tá merecendo), que se consolidou na mesma época que o Romantismo, prima pela ideia do individualismo. As ideias convergem. Faz sentido que uma cultura extremamente individualista tenha mantido essas noções a respeito do processo criativo. E cá estamos. Ainda tentando separar arte do artista.
No final do ano passado tive uma experiência literária daquelas de mudar a percepção de uma vida. Lendo “Baptzing”, conto da Alice Munro, eu entendi porque fiz as escolhas que fiz aos vinte e poucos anos. Eu tive um insight tão profundo, daqueles que demoram anos na terapia. Ler esse conto me fez lembrar porque literatura é algo tão potente, como a literatura nos abre para o mundo, para a vulnerabilidade nossa e do outro. Foi um momento de me sentir maior que a vida através da arte de outra pessoa. Aí eu descubro que essa pessoa, Alice Munro, a consagrada ganhadora do Nobel de Literatura Alice Munro, acobertava o abuso sexual que a própria filha sofria do padrasto. Munro, sabendo toda a verdade, ficou ao lado do marido e condenou a filha. Puta que pariu, Alice Munro. Depois da Bradley, depois da J.K. Rowling transfóbica, mais uma obra que eu gosto de uma forma tão profunda tinha que ser destruída por um ser humano horrível? Puta que pariu.
Eu fiquei com raiva. Fiquei real com raiva. A crítica literária e acadêmica em mim foram sufocadas pela fúria da Melissa leitora. Como é que eu pude me conectar com algo criado por uma pessoa capaz de fazer algo assim? Como uma arte que move sai de alguém com essas posturas? Lá estava eu, com meus dois pezinhos fincados no Romantismo. Afinal, eu sou parte dessa cultura. Também quero minha casa à beira de um lago para trocar poemas com meus amigos sobre emoções intensas. Até nossos sonhos são Românticos. Até nossas raivas são individuais.
Ter os dois — a arte como expressão individual única do artista e separar a arte do artista — não dá. Vivemos nessa dicotomia e sofremos. Tentamos encontrar uma lógica para nos acalentar, nos tornar menos ativos no processo. Dizemos que não sabíamos, que outros artistas famosos foram ainda mais terríveis, que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa, mas isso não adianta.
Você nunca vai separar a arte do artista. Você está criando uma fantasia tranquila para fazer sua própria vida mais confortável. Porque você decidiu viver de uma forma que cria sistemas de valores que você não quer bancar.
“what I’m doing about alice munro” — Brandon, do
Eu não sei o que fazer sobre isso. Agora de repente esse texto vai acabar. Porque essa não é uma pergunta que o eu responde como os Românticos queriam. Não tem algo genial dentro de mim que vai resolver esse dilema. Essa é uma pergunta para o nós. E não estamos preparados para ele. Não enquanto vivermos nesse sistema.
outras dores causadas pelo romantismo:
🎵 A ideia de um gênio artístico acima de tudo e de todos foi ironizada maravilhosamente pela banda estadunidense boygenius. Uma das integrantes, Lucy Dacus, disse numa entrevista que o nome da banda veio de uma atitude no estúdio durante o processo criativo: “Se uma pessoa vinha com uma ideia [e dizia]: ‘Eu não sei se é bom, é provavelmente horrível….’ — era assim: ‘Não! Seja o menino gênio! Todo pensamento seu é válido, só põe pra fora’”. Essa história me marcou muito. Que possamos todes nos dar ao luxo de sermos medíocres de vez em quando com a auto estima de um menino gênio.
🎵 Millennials estão vivendo o retrogosto da nostalgia ao ver o emo se tornar uma estética retrô. Palidez, uma relação ambígua com a morte, ode ao sofrimento, angst, fascinação pelo sublime, delineador borrado. Tudo isso está voltando. É uma música do My Chemical Romance ou um poema Romântico do século 19? Às vezes é realmente difícil dizer. Minha adolescente interior ama enquanto chora num cantinho. Meu eu adulto se diverte.
🌑 Hoje é Lua Nova da sétima lunação do ano. Não tivemos news da lua cheia porque às vezes a vida é imprevisível. Mas tudo é um ciclo, então cá estamos de novo. Obrigada por estarem aqui comigo!
Aproveite também para ler essa antologia lunar deliciosa que tem conto meu!
nossa que complicado, ontem mesmo estava nesse tema com uma amiga sobre um artista que fala de coisas maravilhosas e descobrimos que na real é bem diferente.
mas pra tentar puxar algum fio de caminho, quando estava lendo me lembrei tb de succession e todas as discussões que a série gerou porque ao mesmo tempo que a gente se via nos personagens tinham ações tão absurdas que causavam uma repulsa da gente admitir - tirando total dos casos que você trouxe que são de violência e crimes.
reflexão dificílima e muito bem construída. saio com nenhuma resposta e várias perguntas para me fazer (e, de quebra, ouvindo uma música aqui de boygenius que não conhecia e curti!)